[Cyro Martins]
I- O Autor:
Nasceu em Quaraí, em 1908. Médico psicanalista, foi contista, ensaísta
e romancista. Pertenceu ao grupo de autores do chamado 'romance de
30', na medida em que sua obra se adequou às características
levantadas para os escritores que produziram narrativas 'em que são
apresentadas de forma direta os modos de existência de sociedades
concretas ou supostamente concretas'.
Enquanto nos apresenta o monarca dos pampas, personagem épica na
conquista e defesa da terra, Cyro fornece a outra visão do gaúcho: o
trabalhador descapitalizado, pobre, desempregado, que substitui o
trabalho do campo por um subemprego na cidade - o gaúcho a pé. Não há
nada de épico, portanto, nas personagens de Cyro Martins. O Autor
morre em 1995.
II- Trilogia do gaúcho a pé
'Quero salientar que nunca quis contribuir com a ampliação da mentira
do monarca das cochilas. Nunca trarei o gaúcho como personagem em
estilo ufanista. Pelo contrário, procurei ser realista, para poder ser
útil de alguma forma' [Cyro Martins].
A temática do gaúcho a pé, cujo aspecto nuclear é a lenta expulsão dos
peões da estância e sua inexorável pauperização nos cinturões da
miséria das cidades da campanha, não foi apenas um achado casual. A
temática surgiu a partir de um modo de viver os problemas, da sua
circunstância social. Como médico em São João Batista do Quaraí,
cenário de todos os seus romances, conheceu de perto e muito cedo as
diferenças sociais e a miséria instituída pelos latifúndios.
Deste modo, na trilogia do gaúcho a pé, composta de Sem rumo, Porteira
fechada e Estrada nova, Cyro Martins faz uma operação dolorosa, um
corte vertical e profundo nos problemas sócio-econômicos que afligem a
campanha a partir de 1910/20 e que vêm se avolumando.
1. Porteira fechada
Em 1944, Cyro Martins retoma a sua trilogia do gaúcho a pé, com
Porteira fechada.
Apesar de ser um romance autônomo, que pode ser lido separadamente dos
demais, continua a temática do gaúcho sem terra, iniciada em Sem rumo,
e que vai terminar com Estrada nova. Décio Freitas, na introdução que
faz à Porteira fechada, comenta a consciência aguda de Cyro Martins em
pintar com talento determinadas relações sociais de produção, uma das
'mais belas tentativas de romance social já realizadas entre nós'.
Décio Freitas, neste mesmo prefácio, situa Cyro Martins entre os
maiores romancistas rio-grandenses. Exige do Autor, no entanto, um
passo à frente na construção do romance, na penetração psicológica, ou
seja, realização integral das suas possibilidades: 'já tem experiência
e equilíbrio em tal grau, que o que lhe falta em vigor artístico
talvez venha a ser complementado quando Cyro Martins acertar de todo
na sua vida sociológica da campanha sul-riograndense.
Porteira fechada configura a tirania econômica da classe dominante
sobre a massa de trabalhadores rurais. O problema básico é - e
continua sendo - o da distribuição, o da exploração das massas. A
tirania econômica impõe um assalto à pequena estância; ocasiona a
crise, que se traduz no êxodo contínuo às cidades do interior e à
capital.
João Guedes, gaúcho pobre, com meia quadra de campo arrendado, criava
e cultivava para sobreviver. Mas a miséria, antes tolerável na
estância, alcança situação extrema e terrível quando o proprietário se
vê obrigado a vender a quadro e o novo dono a requer para engorde do
seu gado. Expulso do seu chão, João Guedes vai para os ranchos que
cercam a cidade de Boa Ventura. A decadência econômica, psicológica e
moral de João Guedes empurra-o para o roubo. Quase não reage, quando
uma de suas filhas morre de tuberculose e a outra se prostitui. A
família de João Guedes chega ao último grau da degradação humana e sua
morte miserável constitui apenas o corolário deste desajuste social.
Cyro Martins, com um toque irônico, conclui: 'Que engorde dava aquela
invernada! Para um fim de safra, então, já com caídas para o inverno,
não havia campo que se igualasse. Seiscentos novilhos pastavam
folgadamente entre as altas cercas de sete fios e madeirame de lei que
a tapavam. O sol entrou sem grandes esplendores. A noite caiu
suavemente. Que paz naqueles campos!'
2. As coxilhas sem monarca
Na trilogia do gaúcho a pé, Cyro Martins detecta e passa a analisar o
problema da gradativa marginalização do gaúcho, sua expulsão da
estância e seu servilismo. As causas vêm à tona aos poucos. Em Sem
rumo o autor opõe de modo muito simples a idéia de um campo agradável
e protetor, ainda que pobre, e de uma cidade desumana. Já em Porteira
fechada, a crise econômica é causa direta dos desequilibrados,
conflitos e traumas, da miséria de toda a família de João Guedes. Os
personagens permanecem num total servilismo em relação ao sistema que
lhes foi imposto.
Os temas de proporções épicas não correspondiam mais à realidade da
desalentadora década de 1930/40. Os temas clássicos do regionalismo
estavam gastos e estereotipados e Cyro Martins trouxe à tona a
transição da estrutura econômica, política e social.
As personagens que por ventura possamos extrair das entranhas do
processo histórico a que estão subordinadas possuem uma estrutura
mental primária, tanto que nem se capacitam da própria desgraça. E
como essas coroas de miséria que circundam as cidades constituem uma
população doente, desnutrida, conseqüentemente, desanimada, não
possuem nem sequer o elã do protesto.
Poucos são os escritores que possuem uma visão tão clara de sua obra,
dos limites e de suas potencialidades. Caro Martins recriou um mundo,
uma época de crise e de intensas transformações. Resgatou-a com
empenho e talento e tornou-a viva para sempre. Além de perseverança e
talento, Cyro Martins teve sorte: a vida deu-lhe cancha. E ele soube
aproveitá-la.
Monarca das coxilhas= símbolo de hombridade, bravura e fortaleza de
espírito.
III- Resumo:
A marginalização do gaúcho a pé, o gaúcho pobre que foi obrigado a
refugiar-se, sem eira nem beira, nos arredores das cidadezinhas. Ali
perde o interesse pelo trabalho, o gosto de viver, emborracha-se,
adoece e morre na miséria. Esse gaúcho desenraizado, inconforme,
encurralado no rancherio miserável, é apresentado na figura de João
Guedes que encarna todos os sem-rumos da campanha que vêm dar nos
arrabaldes das grandes cidades, onde eles, aos poucos, sentem que não
encontrarão maneiras de subsistir.
Um livro apaixonadamente humano, exato e sincero na descrição das
condições horríveis em que está sendo atirada a massa dos nossos
trabalhadores rurais. João Guedes, o gaúcho honesto e sofredor, era
pobre, com a sua meia quadra de campo arrendado. Naquela meia quadra,
ele criava e cultivava, com frutos mais do que parcos e miseráveis.
Mas um dia a coisa piorou mais ainda, porque o proprietário da meia
quadra teve que vendê-la e o novo proprietário quis o campinho para um
'engorde'. E João Guedes é expulso do seu pedaço de terra, atirado sem
rumo na estrada nova, indo para os ranchos que cercam Boa Ventura, uma
típica cidadezinha do interior. Ali ele vai sofrer um processo
implacável de decadência material e moral que culmina com a prática do
roubo, a morte por tuberculose de uma das filhas, a perdição da outra.
Um rosário de miséria, o deboche total dum punhado de seres humanos.
João Guedes e a sua família chegam ao último grau de desajustamento
social.
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