quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O Filho Eterno de Cristóvão Tezza.

O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza

O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza, foi publicado na categoria de "romance brasileiro", mas é um texto escancaradamente autobiográfico.

Como o protagonista de seu romance, o autor tem um filho com síndrome de Down. O livro não disfarça o caráter de acerto de contas do escritor com seu filho – ou, melhor dizendo, consigo mesmo no papel de pai desse filho. Ainda assim, Tezza rejeita o rótulo de memorialismo para ficar com o de romance: a narração é toda em terceira pessoa, por exemplo.

A obra se afigura como uma brilhante reflexão sobre a necessidade e a importância da ação do tempo para operar o ciclo da aturação/amadurecimento. Este ciclo se justifica porque plasma duas variáveis significativas de um problema que a crítica literária tem, ao longo de sua história, tratado de forma dicotômica: o narrador e o autor, o sujeito real e o personagem, o escritor e o protagonista, ou ainda, quaisquer outros aportes demonstrativos que se queira dar para separar o homem que escreve da ficção que ele escreve. Assim, o romance abre caminhos inovadores para que se discuta a tão famigerada relação entre vida e obra, autobiografia e ficcionalidade, como se a ficção pudesse, de per se abdicar da história ou como se a realidade não pudesse adentrar os labirintos da subjetividade vital por considerá-la, aprioristicamente, o reino positivista da neutralidade.

Dividido em vinte e cinco capítulos, não numerados, o romance é introduzido por duas epígrafes significativas: a primeira, de Thomas Bernhard, apresenta o conflito entre o desejo pela descrição fiel da verdade e o resultado dessa descrição; a segunda, de S. Kierkegaard, aponta a reflexão especular entre pai e filho,
tema de que se ocupa o livro em suas duzentas e vinte e duas páginas: as vicissitudes, o calvário e as amarras de um jovem escritor ao receber a notícia de que
seu primeiro filho era portador da Síndrome de Down e a peregrinação vital em torno desse fato até sua liberta aceitação.

Antes mesmo de iniciar a leitura, somos informados de que o romance tem como ponto de partida as memórias do escritor Cristovão Tezza, e, ele mesmo, na epígrafe, deixa claro que memórias são essas. Uma história baseada em fatos reais que não tem pretensão de ser a verdade. É a história do relacionamento de pai e filho – e, pela orelha do livro, somos informados de que se trata de um relacionamento com "dificuldades, inúmeras, e as saborosas pequenas vitórias". Além disso, trata-se de um "livro corajoso" – o escritor é considerado corajoso ao relatar parte de sua vida, ao expor sua família e sua intimidade.

O Filho Eterno é uma narrativa seca de desencantamento, em terceira pessoa, onde os personagens não têm nome, com exceção do filho, Felipe, e são chamados de "ele", "o pai", "a mulher", "a mãe", "a filha", "a irmã". Mesmo Felipe frequentemente aparece como "o filho" em contraposição ao "pai". Não encontramos o lugar-comum, o apelo ao sentimento de pena e empatia, e, isso é uma das qualidades de uma história que prende o leitor por não fornecer respostas e soluções óbvias, pelo contrário, a surpresa é uma constante durante a leitura. Percorr-se a trajetória do personagem pai e, dentro de sua história, acompanha-se a trajetória do personagem filho, Felipe. O treinamento neurológico nos primeiros anos de vida do filho é contrastado com o 'treinamento' do pai em relação às tentativas de publicar seus livros e as recusas das editoras:

Eu também estou em treinamento, ele pensa, lembrando mais uma recusa de editora. A vida real começa a puxá-lo com violência para o chão, e ele ri imaginando-se no lugar do filho, coordenando braços e pernas para ficar em pé no mundo com um pouco mais de segurança (p. 130).

O crescimento e o desenvolvimento do filho são percebidos pelo pai nas representações de papéis sociais que o filho se esforça em cumprir (p. 211). Ao mesmo tempo, o pai descobre a alegria que a rotina traz e a tranquilidade conquistada com papéis sociais como "o professor universitário", "o escritor".

"O pai começa a descobrir sinais de maturidade no seu Peter Pan e eles existem, mas sempre como representação" (p. 218). O espelho no qual ambos, pai e filho, se veem é o espelho que reflete a representação dos papéis sociais. A percepção de mimetismo social no filho não está muito distante dos papéis que o pai é solicitado a cumprir socialmente na universidade, na família, na escola do filho, no campeonato de natação e na apresentação de teatro do filho. A dificuldade do pai é tão grande quanto a dificuldade do filho. A criança que vive eternamente no presente aprende a responder ao que é solicitado dela socialmente. O pai provisório, que só pensava em viver o presente, também aprende. E aqui é revelado o escritor por trás da narrativa. A sutileza ao contar os episódios na vida do pai e do filho é alcançda no contar da história, pois não há momentos de avaliação e reflexão em que paralelos são explicitamente estabelecidos. Esse trabalho é reservado ao leitor.

Há no romance de Tezza a preocupação em não deixar o leitor "morrer de repente", ou não abandonar o texto.

A narrativa de O filho eterno inicia sob o signo da construção, melhor dizendo, de duas construções: do pai-narrador-escritor e do filho-personagem-narrado.
Há uma partogênese significativa envolvendo o nascimento e criação do filho e deslocando-se para o nascimento do escritor e o ato da escritura. As marcas vitais conjugam-se nas palavras do próprio autor: “romance brutalmente autobiográfico”. A despeito das dificuldades romanescas atribuídas ao gênero autobiográfico, o livro furta-se ao mero assédio confessionalista porque o autor – experiente e exigente quanto às técnicas literárias – soube optar pela utilização de um ponto de vista revelador.

Narrando em 3ª pessoa, ao invés da 1ª pessoa do singular, Tezza – com esse hábil expediente de foco narrativo – forjou uma nova indumentária para o romance autobiográfico e, muito embora os poros da vida refluam do corpo do texto, a essência do mesmo – sua alma – ainda continua sendo a ficção.

O enredo gira em torno de duas personagens principais: pai e filho. As outras personagens apresentadas no romance são secundárias, inclusive a mãe, que apesar de ser a primeira personagem apresentada pelo narrador através de sua própria fala “- Acho que é hoje – ela disse.” (pág. 9), é pouco mencionada durante a obra. O narrador utiliza os pronomes “ele” e “ela”, para se referir aos pais e à irmã de Felipe, o único personagem com nome declarado. Quando se trata da relação de afeto com um filho, e principalmente, quando este apresenta uma anomalia, espera-se que a figura da mãe tenha destaque, porém, no romance é a paternidade que é enfatizada.

A abertura do romance dá conta da voz da esposa anunciando ao pai a chegada iminente do filho, ao mesmo tempo em que vai construindo a figura desse pai-narrador, através de um discurso amparado em termos que expressam dúvidas, incompletudes e indefinições: “Alguém provisório, talvez; alguém que, aos 28 anos, ainda não começou a viver. [...] ele não tem nada, e não é ainda exatamente nada”. (p. 9). Descreve-se como um “filhote retardatário dos anos 70”, e se vê como um poeta cafona, gorado em sua profissão, sustentado pela esposa que sobrevive de aulas particulares e revisões textuais de “teses e dissertações de mestrado sobre qualquer tema” (p. 12).

O Pai é personagem introvertido, ansioso, que tem dificuldades para demonstrar seus sentimentos. Um homem de vinte e oito anos, que bebe e fuma compulsivamente. Vê a solidão como um projeto de vida, para assim demonstrar sua aversão à sociedade, e a literatura como fuga da realidade. Pode ser definido como: “... o eterno observador de si mesmo e dos outros. “Alguém que vê, não alguém que vive.” (pág. 98). Um militante sem causa, um escritor sem projetos realizados que não consegue viver de seu próprio trabalho.

Felipe é apresentado pelo narrador pelas características de um portador de síndrome de down: “... algumas características... sinais importantes...vamos descrever: Observem os olhos, que tem as pregas nos cantos, e a pálpebra oblíqua...o dedo mindinho das mãos, arqueado para dentro...achatamento da parte posterior do crânio...a hipotonia muscular...a baixa implantação da orelha e...” (pág. 30). Segundo o pai: “é uma pedra silenciosa no meio do caminho” (pág. 112).

O narrador invade os pensamentos do pai testemunhando todos os acontecimentos de sua vida, de forma invisível está presente em todos os cenários da narrativa, assim expõem ao leitor, os sentimentos, as emoções e as aflições de criar um filho com necessidades especiais em uma época que pouco se sabia sobre a Síndrome.

Ainda no 1º capítulo, após ironizar suas “romantiquices” literárias – publicaria, na Revista de Letras, o poema "O filho da primavera" –, deixa claro que “um filho é a idéia de um filho”; e que, nem sempre, “as coisas coincidem com as idéias que fazemos delas” (p. 14). Tal inconformismo entre o sonho e a realidade
reflete a via-crucis desse Édipo andarilho: recuando no tempo, há apenas dois meses passados, percebe a relação irônica e mordaz entre uma dissertação corrigida para um amigo, na área de genética, cujo tema versava sobre as características da trissomia do cromossomo 21, a síndrome de Down, popularmente conhecida como “mongolismo”, e o fatídico acaso que o presente lhe reservava: um filho portador dessa mesma síndrome.

O destino não o fez cegar os próprios olhos, mas o narrador admite que a morte do menino seria um alívio e o ódio furioso que o acomete fica explícito quando se nega “bovino, a ver e a ouvir” (p. 31). Focando a parafernália familiar e hospitalar, característica do nascimento de bebês, o narrador estabelece uma relação com os rituais dos sacrifícios religiosos e aponta o caráter de encenação/representação de papéis tanto dos pais, quanto dos médicos e enfermeiros.